A tradução é uma operação solitária e ponto

15 de junho de 2020

By KeMa

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A tradução é uma operação solitária e ponto.

É mesmo?

Recentemente tentamos entender uma ideia muito difundida sobre o ato de traduzir e, mais no geral, sobre a tradução.

A tradução é uma operação solitária. Esta é a ideia. Se tornou uma característica comumente sublinhada quando se fala da tradução em comparação com a interpretação. Acabamos concluindo que talvez chegou a hora de repensar esta ideia.

A tradução não é uma operação solitária e ponto, é uma operação solitária de um ponto de vista social. De fato a tradutora trabalha fisicamente sozinha: ocupa seu lugar de trabalho idealmente sozinho para favorecer o mais possível sua concentração. Ela trabalha num escritório, numa biblioteca, no seu quarto… Ela não se encontra fisicamente – como é o caso da intérprete – num lugar populoso como um evento, uma palestra, um congresso, um meeting. Resumindo, a tradutora não exerce a atividade tradutória num acontecimento social.

A tradução, para nós, é uma operação social de um ponto de vista intelectual.

Os recursos dos quais a tradutora se serve e as estratégias e métodos que ela mesma vai desenvolvendo vêm de e acontecem graças à socialidade. Em nossos dias, graças sobretudo à socialidade virtual. O instrumento físico que a tradutora privilegia é o computador e este instrumento físico lhe fornece acesso à recursos que estão estocados numa nuvem.

Entendemos a tradução como operação intelectualmente social porque a tradutora, de uma forma ou de outra, precisa se aproximar dos outros, ou melhor, do resultado do trabalho dos outros.

Quem são os outros?

1# Pesquisadores e teóricos da tradução.

2# Tradutores.

3# Pessoas e grupos de trabalho que elaboraram bancas de dados, compilaram dicionários, aplicativos.

4# Escritores, repórteres, jornalistas, blogueiros.

Quais recursos nos fornecem?

1# Pesquisadores e teóricos da tradução

Os pesquisadores fornecem estudos, artigos, dissertações, teses, hipóteses, propostas de uma determinada área, sobre um determinado tema com o qual a tradutora, um dia ou o outro, vai se deparar. Sobretudo no que diz respeito à tradução literária, os trabalhos de pesquisadores em áreas como antropologia, etnologia, filosofia, historia e ciências sociais, pode se revelar de valor inestimável, pois a tradutora deve poder compreender o mais possível do mundo ou do universo criado ou reconstruído no texto à ser traduzido.

Os teóricos da tradução são preciosos neste sentido. Seus trabalhos sintetizam e portanto oferecem de forma condensada elementos que estimulam a pesquisa ulterior. Assim, tradutoras no início da carreira podem aprofundar sua própria reflexão e cultura geral teórica segundo seus interesses e necessidades específicos. Os teóricos da tradução fazem, várias vezes referência a pesquisadores em diversas áreas que a tradutora deveria conhecer. Em poucas palavras imprecisas, podemos dizer que teóricos da tradução oferecem resumos de temas et citam nomes e instituições que operam nas áreas de pesquisa. Um artigo de teoria da tradução pode se revelar um verbete de enciclopédia para uma tradutora.

2# Tradutores e tradutoras

Tradutores e tradutoras são pessoas, figuras profissionais que uma tradutora deveria consultar, direta ou indiretamente, se tiver a oportunidade. Diretamente: submeter uma tradução a um outro tradutor, para confronto, verifica ou troca de ideias. Indiretamente: lendo obras traduzidas. Isto é extremamente proveitoso se a tradutora for bilíngue, trilíngue, plurilingue, multilingue ou poliglota. Poder ler uma obra em língua original e acessar também uma tradução é um exercício que vale a pena: é uma forma de aprendizagem passiva que vai se tornar precioso na hora de a tradutora se colocar à prova de traduzir um texto.

3# Pessoas e grupos de trabalho

Pessoas e grupos de trabalho que elaboraram bancas de dados, compilaram dicionários, aplicativos.

Qualquer tradutor se serve de bancas de dados, de dicionários, de aplicativos, de terminologias. Ou, para chegar a um nível de competência tal que não precise usá-los – coisa que se for possível, francamente não achamos desejável (pelo bem da própria tradutora e ainda mais pelo dos leitores) – com certeza, num momento anterior já usou. De modo que, em nosso mundo onde novas situações, ocorrências, conjunturas criam termos, expressões, estruturas ou recuperam termos obsoletos, recorrer à estes instrumentos é, muitas vezes absolutamente necessário: para testar sua próprias hipóteses, para verificar suas escolhas, para apresentar aos leitores um resultado de qualidade e em linha com a época.

Mas além disso tudo, se trata de recursos saudáveis para a humildade de uma tradutora; enriquecedores da sua cultura geral e de sua competência. Em última instância, se trata de recursos que intensificam sua competitividade enquanto profissional.

4# Escritores, repórteres, jornalistas, bloggers

Na verdade, este quarto elemento deveria ser o primeiro.

Para traduzir, a tradutora precisa idealmente ter um conhecimento aprofundado dos dois idiomas principais com os quais está trabalhando num texto. Aprendemos idiomas escutando pessoas ao nosso redor falarem: nossa família, quando somos crianças; mais tarde nossos círculos educacionais e formativos; nossos ambientes de emprego. Enriquecemos o léxico e ampliamos o nosso imaginário referente a um idioma lendo livros, artigos, blog-posts e, em geral, consumindo conteúdo multimédia.

Na fala cotidiana, usamos um número limitado das estruturas gramaticais, dos jargões, do vocabulário de nosso idioma. Também, em um dia, nos encontramos só em um número limitado das situações comunicativas possíveis. Portanto, os livros são um recurso inestimável para construir um conhecimento aprofundado de um idioma. Esse é, naturalmente, um pré requisito para uma tradutora: ter conhecimento aprofundado ou a boa disposição para construir este conhecimento de seus idiomas de trabalho.

É bom se aproximar desses recursos também para não ir ficando cada vez mais presa nas suas áreas específicas de trabalho, é saudável: ajuda a arejar a mente.

Todos estes recursos existem porque alguém, outras pessoas os produziram e continuam produzindo-os e disponibilizando-os. A tradutora não é e não deveria ser uma ilha. Ela tem que aproveitar esses recursos.

Então, você continua acreditando que a tradução seja uma operação simplesmente solitária? Eis um breve exemplo que retoma vários dos fatores que acabamos de considerar.

A tradução de um trecho de Barbara Cassin

Algum tempo atrás traduzimos umas páginas de Quand dire c’est vraiment faire: Homère, Gorgias et le peuple arc-en ciel da autora francesa Barbara Cassin. Foi o processo no qual se manifestou a necessidade de colocar em questão a ideia segundo a qual a tradução é uma operação solitária e ponto.

De fato, o exemplo é particularmente relevante porque Barbara Cassin, pela sua formação, pela sua experiência e pela sua produção, entra em todas as categorias das quais falamos aqui. Ela é filosofa e filóloga, tradutora, teórica da tradução, pesquisadora, escritora. Uma das produções coletivas mais de vanguarda que ela dirigiu é o Vocabulaire européen des philosophies – Dictionnaire des Intraduisibles, um dicionário enciclopédico de termos e expressões de vários idiomas cuja compilação levou mais de 10 anos.

Sem competência no idioma do texto original, como traduzir?

Nas páginas traduzidas de Quand dire c’est vraiment faire se manifestam tanto a formação quanto a experiência de Barbara Cassin, também não faltam referências a outros textos e produções dela.  Nossos conhecimentos do francês foram primordiais para podermos ler e entender o texto em si e, quando oportuno, ir consultar as referencias. Esses conhecimentos foram construídos graças à imersão num ambiente francófono, a leituras e ao consumo de material em francês ao longo do tempo. Reminiscências das aulas de grego foram valiosas.

Também, o fato de ter tido aulas de teoria da tradução em vários ciclos de formação se revelou significativamente benéfico na hora de pensar a própria tarefa tradutória, chegar a ver aspectos específicos do texto e desenvolver truques e estratégias para resolver seus pontos críticos. Além do mais, considerado que ManusKritur.com visa, entre outros, propor traduções inéditas de matérias entre idiomas europeus, americanos e africanos num primeiro tempo, nos atualizarmos com as novas publicações sobre teoria da tradução é algo totalmente ao serviço de nosso propósito.

Como os tradutores anteriores lidaram com isso?

 Nas páginas traduzidas de Barbara Cassin, há uma parte na qual a autora reporta um artigo da constituição de Atenas do século V°, redigida após a Tirania dos Trinta e a guerra civil. Tratando-se de textos antigos como a constituição de Atenas, pode ser extremamente proveitoso se perguntar como os tradutores anteriores traduziram. Assim fizemos. Inclusive, foi uma iniciativa que ajudou a entender nuances importantes do texto.

Fazer controlar a qualidade de uma tradução

Para concluir, uma etapa necessária, sobretudo para tradutoras/es no começo da carreira, é submeter o texto traduzido a um tradutor ou uma tradutora com experiência. Se ele ou ela tiver competência nos idiomas fonte e de chegada do texto em questão, isso será inestimável no controle da qualidade do texto final. Neste sentido, publicar o trecho de Quand dire c’est vraiment faire foi uma resolução tomada justamente porque o texto passou por esse confronto e verifica de um tradutor com muita mais experiência.

Todos esses fatores nos levam a colocar em questão a ideia segundo a qual a tradução é uma operação solitária e ponto. Tem alguma reflexão que você, leitor, acha relevante compartilhar conosco?

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