No português atual bobo tem essencialmente o sentido de estúpido, idiota. Antigamente, o “bobo” era o palhaço, o bufão de corte, num território governado por um senhor ou um rei. Aquela criatura ridícula, ou percebida como tal, na qual confluíam todas as nuances do cômico e do tragicômico. Em O Bobo, Alexandre Herculano chama a nossa atenção sobre o trágico que permeia essa figura.
Em português, o acento cai na primeira “o”.
O francês reverte as coisas. Você deveria pronunciar acentuando a “o” final. E não é a mesma coisa, de jeito nenhum. Esta palavra existe no vocabulário dos adultos. Também existe, na mesma forma mas com um sentido bem diferente, no vocabulário infantil.
Os adultos usam a palavra “bobo” para indicar aquelas pessoas que – num contexto medieval – teriam a oportunidade de se tornar não os palhaços, os bufões de uma corte, mas bem os cortesãos.
Para semplificar, são chamados de “bobos” (não esqueça a acentuação na “o” final e a “s” muda) – “Les bobos” em francês – os burgueses que tendem a levar uma vida boemia. Ou seja, pessoas economicamente serenas mas com posicionamentos ecologistas.
Os adultos usam esta palavra com um tom entre a zoeira e o desprezo.
Mas “bobo” é também “un petit mal”. A palavrinha da dor, dos pequenos machuques infantis. Quando uma criança se machuca , os grandes perguntam para ele “Tu t’es fait um bobo?”.
Possível tradução literal: “Você se fez uma dorzinha?”.
Aceitável tradução portubrasileira: “Você se machucou?”.
De modo que em francês, “Bobo” é a palavra para desdramatizar; ela atenua a ferida, aligeira o machuque. Ela suaviza a própria percepção da dor, das dores físicas que atestam que estamos tomando as medidas da realidade e que o mundo está tomando de volta nossas medidas.
Portanto “les bobos” são “as dores pequenas”; aquelas dores que acontecem e são de alguma forma necessárias para a gente crescer, se fortalecer, robustecer nossos ossos, reforçar nossa epiderme.
Reforçar nossa epiderme, operação que em italiano falamos “Farsi la pelle” para enfrentar a existência, lidar com a vida.
Possível tradução literal: “Se fazer a pele”.
Aceitável tradução portubrasileira: “espessar o couro”.
“Tu t’es fait um bobo?”. Com esta pergunta, a dor já não tem consistência, ela se torna de repente, absolutamente suportável, já vai desaparecendo por completo.
Os franceses costumam dar um beijo no ponto exato onde o “bobo” aconteceu: nestes casos, se o beijo chegar com prontidão, geralmente a dor desaparece ainda antes que se tenha percepção dela.
Porém, em algum lugar, no hemisfério sul do planeta, a dor chega até o ponto de não poder desaparecer, de jeito nenhum. É preciso expressá-la, ou deixar ela se expressar. É preciso expelí-la.
Então as pessoas Kpa Abobo.
Kpa Abobo é uma locução verbal do ewe e do mina composto por duas palavras.
O verbo que nos diz que as pessoas dizem sua dor com gritos. Quando kpa abobo, as pessoas soltam a voz com um ímpeto que nasce nos pulmões e com uma energia que tem suas raízes no coração.
Algo parecido com aquele “Urlo Nero della Madre” do Salvatore Quasimodo.
Com certeza, os Ewe-Mina têm uma letra-sílaba a mais. Talvez seja mesmo para dizer a necessidade que a nos se impõe de expelir “un mal grand”, uma “dor grande”.
0 comentários